A mutação dirigida (mas nem tanto) de Eva Jablonka
- Henrique Rufo
- 20 de nov. de 2016
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Com a publicação de seu livro, Evolução em quatro dimensões, em 2005, Eva Jablonka e Marion Lamb apresentaram algumas críticas ao modelo evolutivo neo-darwinista. Suas críticas, e de outros pesquisadores em outras ocasiões, giram em torno da visão evolutiva centrada no gene, onde o gene seria o alvo da seleção natural, ou seja, a principal unidade de seleção. Boa parte das criticas de Jablonka são voltadas ao biólogo Richard Dawkins, um dos principais divulgadores dessa visão gene cêntrica, popularizada com a publicação de seu livro O Gene Egoísta. Uma das críticas feita pelas autoras em um dos capítulos de seu livro (Variação genética: cega, dirigida ou interpretativa?) é direcionada às mutações aleatórias.

As mutações são o "alimento" essencial da seleção natural, são elas que geram a variabilidade, juntamente com outros processos envolvidos no embaralhamento do material genético, com a qual a seleção natural irá trabalhar. Na concepção de Jablonka e Lamb nem todas mutações ocorrem ao acaso, aleatoriamente, algumas podem ser dirigidas ambientalmente, o que elas declaram ser um resgate da ideia dos caracteres adquiridos postulada por Larmarck, em que o ambiente pode afetar diretamente os organismos, causando alterações nesses indivíduos. Contudo, essa reutilização da premissa lamarckista parece carecer de evidências, dando a impressão de estar baseada em palpites.
Jablonka usa como exemplo inicial o trabalho de 1988 do microbiologista John Cairns que foi publicado na revista Nature. O experimento sugeria que algumas bactérias respondiam a modificações no ambiente com mutações que ajudavam na sua sobrevivência. Ela discorre brevemente sobre a repercussão dessa pesquisa na época, exaltando como uma confirmação de que as mutações não eram aleatórias, porém, conclui posteriormente que "as evidências experimentais disponíveis hoje sugerem que Cairns e seus colegas provavelmente estavam errados". Mas ela sugere que a partir desse trabalho novas pesquisas foram estimuladas evidenciando que as mutações não seriam totalmente aleatórias. Evidencias essas, que na minha opinião, não foram apresentadas claramente.
Outro exemplo que as autoras utilizam no livro é um trabalho mostrando que, quando passam por um estresse ambiental, como falta de alimento, aumento de temperatura de forma brusca e etc., algumas células ativam sistemas que modificam com mais frequência certas regiões do DNA para conseguirem responder com eficácia a essas mudanças ambientais. E tornam a concluir que esse pensamento foi posteriormente confirmado apenas em partes, afinal o campo das variações genéticas, mutações, correções e erros, é algo muito complexo. Contudo, isso não é nenhuma informação esclarecedora. Respostas a estresse ambiental são conhecidas em diversos organismos, em especial micro-organismos. Se o ambiente em que esses organismos vivem não é estático e pode sofrer alterações com o tempo, algumas delas sendo bruscas, qualquer mecanismo que aumente a variação genética entre os indivíduos seria beneficiado pela seleção natural, pois isso aumenta a probabilidade desse grupo não perecer por completo. Por que? Bem, vamos supor que uma espécie de bactéria esteja muito bem adaptada a viver em um ambiente de 25º C. Caso o ambiente esquente e a temperatura suba para 60º C em média, os organismos que ali vivem irão morrer e a espécie entrará em extinção, a menos que uma mutação que confira resistência a essa alta temperatura apareça no grupo. Uma estratégia de alguns micro-organismos sob estresse ambiental é aumentar o número de indivíduos através da replicação, por que isso, consequentemente, aumenta a chance de surgir indivíduos mutantes que respondam melhor as mudanças do ambiente.
Uma outra "estratégia" encontrada nos seres vivos são pontos no DNA em que a chance de ocorrer uma mutação é mais frequente. Esses pontos são conhecidos por "hot spots" e podem variar em intensidade dependendo do local em que se encontram na molécula de DNA. Algumas regiões, certamente, são mais passíveis de sofrerem alterações do que outras. Regiões mais conservadas do DNA não possuem hot spots, uma alteração em qualquer gene que anule a função das mitocôndrias, por exemplo, seria fatal. Genes com funções mais variadas tentem a sofrerem mais mutações. Um ótimo exemplo, e que é citado no livro, são de bactérias invasoras que precisam lutar contra o sistema imunológico de seus hospedeiros. Principalmente aquelas bactérias que invadem corpos de diferentes organismos, que obviamente possuem sistemas imunes diferentes. Uma espécie que tenha uma alta taxa de mutação em pontos específicos do DNA tem uma chance maior de sobreviver, gerando um individuo capaz de burlar as defesas de seu hospedeiro. É o que acontece quando se faz uso excessivo de medicamentos anti-bióticos, que podem ter o resultado indesejado de promover a seleção de bactérias cada vez mais resistentes. Outro tipo de resposta possível as alterações ambientais é o desligamento ou ligamento de genes, um processo bem conhecido na bactéria E. coli e que também é citado no livro. Resumindo, a bactéria quando encontra uma escassez no ambiente de determinado aminoácido necessário, liga o gene (ou os genes) responsável pela produção desse aminoácido. Quando ele se encontra em abundância no ambiente esses genes permanecem desligados, porém precisa ser ativo quando o ambiente carece dessa substância. Um trabalho chegou a mostrar que essa região do DNA da E. coli sofre uma alta taxa de mutação se esse gene se mostrar defeituoso em um ambiente de escassez.
As autoras, ao longo do capítulo, afirmam que esses exemplos mostram que as mutações não são totalmente aleatórias, mas que podem ser "requeridas e adquiridas" quando necessário. Segundo as autoras "a evolução darwinista pode incluir processos lamarckistas, pois a variação hereditária sobre a qual a seleção age não é inteiramente cega: parte dela é induzida ou "adquirida" em resposta as condições de vida". Bom, acredito que esse tipo de visão faz parte dessa vontade de reviver o conceito de caracteres adquiridos de Lamarck. Não seria, no final das contas, todo o processo evolutivo uma aquisição de características em resposta as condições de vida? Aqueles organismos que não se adaptaram a mudanças no ambiente, não adquiriram características para responderem as condições de vida da época, estão extintos.
Mesmo as mutações chamadas de dirigidas, que surgem em resposta a um determinado estímulo ambiental, acontecem através de suscetivas mudanças aleatórias em uma região específica do DNA até chegarem a um resultado em potencial. Porém, podem não chegar. No fim do capítulo as autoras abrem um espaço para discussão com outro pesquisador sobre o assunto apresentado. Nesse espaço elas informam, aparentemente com um certo ressentimento, que esse processo é algo "mais comum" em micro-organismos. Nos seres mais complexos esses processos parecem estar mais relacionados ao maquinário celular dos indivíduos, em seus sistemas imunes. Elas afirmam que: "até onde sabemos, esse maquinário não é utilizado para produzir mudanças dirigidas nos genes que são passados de uma geração para outra". Ou seja, nada que gere uma grande influência no processo evolutivo ou que tire o gene como unidade de seleção. É aquilo que já é conhecido, mecanismos de respostas que auxiliam na sobrevivência dos organismos ao longo de suas vidas.
Reconheço que nos primórdios do nosso planeta, no momento em que a vida surge e sua evolução inicial, mas essa ânsia por reintroduzir na ciência o conceito lamarckista dos caracteres adquiridos, aparentemente força as pesquisadoras a exagerarem conclusões para que se encaixem nessa premissa. Isso pode também ser uma estratégia de marketing, ganhando visibilidade como algo revolucionário. A tão sonhada quebra de paradigma, como a história da biologia evolutiva já vivenciou algumas vezes, mas isso fica para um outro texto. E como vimos, algumas mutações surgirem em resposta a estressores ambientais não é algo de outro mundo. Duvido, inclusive, que cientistas com uma visão gene cêntrica, como Richard Dawkins, chegam a negar esse tipo de processo. Quando as pesquisadoras são questionadas sobre o papel que esse processo lamarckista tem sobre os organismos complexos elas acabam se esquivando da pergunta trazendo a tona outros mecanismo que atuam na esfera comportamental, cultural e simbólica.
Felizmente o livro traz algumas outras ideias que podem contribuir verdadeiramente para discutir o rumo da biologia evolutiva. Essas ideias são os sistemas de herança epigenéticos, comportamentais, a aprendizagem social e a transmissão de informação através da evolução cultural e da linguagem simbólica. Só que esse é um assunto para outra hora.
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